PLANO DE VÔO I

Estrutura e Organização
Marcos Pontes
17/02/2006

Já acabou o mês de janeiro! Agora falta pouco. Melhor dizendo, agora falta pouco tempo, mas muita coisa ainda para fazer antes da tão esperada primeira decolagem brasileira para o espaço. Incrível como o tempo tem “voado” ultimamente. Olho no espelho. Meus cabelos estão cada vez mais brancos. Ainda bem que as rugas me ajudam. Isto é, não me preocupo em dizer minha idade. Elas, sem qualquer timidez, tomam a iniciativa e já falam, em alto e bom tom, sobre cada um dos meus quarenta e dois anos. Como tudo tem seu lado bom, pelo menos não preciso mostrar a identidade para entrar em lugares proibidos para menores. Grande vantagem! De qualquer forma, o fato do tempo passar rápido demais parece ser resultado de dois fatores: primeiro devido à intensidade das atividades atuais; segundo, porque depois dos quarenta o tempo acelera mesmo. Bem, vamos deixar esse assunto de idade para lá. Dá nostalgia. Sabe aqueles pensamentos do passado? Lembranças bem antigas que voltam de tempos em tempos, principalmente quando ficamos mais velhos?
Assim estou esta noite, sozinho nesse apartamento, protegido do inverno de vinte e sete graus negativos, e recordando antigas conversas com meu pai. E foram tantas, longas e serenas, enquanto caminhávamos juntos para o trabalho, lá em Bauru. Eu tinha cerca de quinze anos. Saíamos bem cedinho. Eu para as oficinas da RFFSA*, ele para o IBC . Lembro especialmente dos dias de frio. Era difícil levantar. Ele, calmamente, sentava ao meu lado na cama, balançava meu ombro e dizia em voz suave: “Marcos! Marcos! São seis horas. O café está pronto. Coragem! Vamos lá!” No caminho, contava histórias de sua infância, de como era a vida da nossa família antes do meu nascimento, do sacrifício para conseguir colocar comida na mesa todos os dias, do suor, do trabalho, da persistência, da luta de cada dia. E aquele, como qualquer outro, era apenas mais um dia “daqueles”. Mais um dia de luta.
Fecho os olhos e sinto o cheiro daquelas manhãs. O aroma do café, a brisa fria no rosto com perfume de mato molhado. “Capim Gordura”, que beirava a pequena estradinha de terra que seguia paralela aos trilhos de trem. Tudo como se fosse ontem. Num certo ponto, cruzávamos as linhas de trem e nos despedíamos. Eu seguia só, no meu caminho, com os meus pensamentos, como hoje.
Aquela foi uma época difícil. Aprendi muita coisa sobre a vida através daquelas conversas, através do exemplo de luta dos meus pais. E assim como eles, quantas outras pessoas? Quantos brasileiros, espalhados por todo esse nosso país, maravilhoso, também não lutam, na batalha do dia-a-dia, ontem e hoje, para ganhar o pão e educar seus filhos, honestamente, para o futuro. Saber quanto difícil é ganhar a vida. Saber a consideração e o respeito que cada uma dessas pessoas merece. Lições importantes que deveriam, sempre, ser lembradas.
Com o pensamento ainda embevecido por todas essas recordações e conceitos, volto rapidamente para a situação presente: faltam menos de quarenta dias antes da partida definitiva para o Cazaquistão e para os preparativos finais da decolagem. Nesse momento, concentro-me na importância de aplicar todas as lições aprendidas. Lições atuais e outras, muitas, do meu passado. Sinto-me determinado a cumprir a minha parte, não só no vôo, mas em tudo que estiver ao meu alcance, para honrar de maneira produtiva o sacrifício dos meus pais e, naturalmente, de cada um de nós, brasileiros que, como eles, batalhamos todos os dias pela vida.
Assim, como parte dessa mesma idéia, acredito ser a hora certa para iniciar a descrição da primeira missão científica espacial tripulada brasileira. Dessa forma, minha intenção é de apresentar, em uma sequência de artigos semanais, um resumo sobre como é a estrutura existente, como será a execução da missão e o que está previsto para o pós-vôo. Logicamente não serão descrições técnicas e administrativas. Essas podem ser encontradas nos documentos correspondentes. A idéia é uma apresentação simples de pontos básicos do assunto.
Historicamente, essa missão começou há 8 anos, em 1997, quando o Brasil ingressou no grupo dos 15 países participantes do Programa da Estação Espacial Internacional**, a EEI . Presidida atualmente pelo Dr. Sérgio Gaudenzi, a Agência Espacial Brasileira - AEB é a instituição nacional responsável por todas as ações e resultados desse projeto. Por meio dessa participação, tivemos direito de selecionar um astronauta brasileiro para ser treinado na NASA e representar o país no espaço, como tripulante da EEI. Assim, em 1998, através de concurso de seleção, fui escolhido. Na parte técnica, o contrato internacional firmado pelo Brasil prevê a construção no País de equipamentos para a EEI. Depois de muitos anos e inúmeros problemas, finalmente, pelo acordo firmado entre a AEB e o SENAI-SP, com o apoio da FIESP, estamos produzindo as primeiras partes nacionais a serem instaladas na espaçonave nos próximos anos. Ótima notícia para a indústria nacional, que agora tem, abrindo-se a sua frente, um mercado bilionário de exportação de alta tecnologia.
Paralelo a tudo isso, ciente dos atrasos e restrições operacionais causados pelo acidente com o ônibus espacial Columbia, a AEB fez todas as negociações com a agência espacial russa, Roscosmos, para que o vôo espacial que estrutura a primeira missão espacial tripulada brasileira fosse executado este ano, a bordo da EEI, acompanhado de experimentos nacionais e com o translado feito por uma espaçonave Soyuz russa. O fato da prévia participação nacional no programa da EEI, associado à existência de um astronauta brasileiro profissional, treinado pela NASA, permitiu que as negociações fossem concluídas com sucesso entre o Brasil e Rússia, um dos principais parceiros da EEI. Além disso, tais condições também permitiram que o custo do projeto fosse reduzido à metade do normal, assim como o treinamento pra o vôo espacial, normalmente executado em dezoito meses, fosse planejado para cinco meses. O contrato entre as duas agências para o vôo espacial foi assinado em outubro de 2005.
De forma bastante resumida, estruturalmente essa missão pode ser dividida em três áreas principais: administrativa, técnica-científica e operacional. Toda a coordenação da chamada “Missão Centenário”, está a cargo da AEB, na pessoa do Gerente do Projeto da Participação Brasileira na EEI, o Dr. Raimundo Mussi, responsável direto por toda a administração do projeto.
A parte técnica-científica é dirigida pela Dra. Marta Humman, que sob orientação direta do gerente de projeto, é responsável, entre outros pontos, pela seleção dos experimentos a serem executados a bordo da Estação Espacial, preparação técnica, testes, definição de procedimentos de execução, planejamento de treinamento, aquisição e análise de resultados durante o vôo e coordenação, em tempo real, com os cientistas correspondentes.
A mim compete a parte operacional, conduzida através de um vôo espacial, com duração total de dez dias, durante o qual serão realizados os experimentos nacionais. Portanto, está sob minha responsabilidade a execução com sucesso do treinamento programado pela coordenação do projeto e a realização no espaço dos experimentos, conforme os procedimentos fornecidos pela AEB para essa atividade. Nas próximas semanas descreverei os detalhes operacionais da missão e do pós-vôo. Fique “na escuta”!

* RFFSA – Rede Ferroviária Federal. IBC – Instituto Brasileiro do Café.
** Detalhes sobre a Participação Brasileira na EEI podem ser encontrados no website www.marcospontes.net

 

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